E a vida continua

020 – Capítulo 20 – Trama desvendada

Centro Virtual de Divulgação e Estudo do Espiritismo – CVDEE

Sala de Estudos André Luiz

Livro em estudo: E a vida continua (Editora FEB)

Autor: Espírito André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier

Tema: Capítulo 20 – Trama desvendada

Estudos

— Patife!... Celerado!... — vociferou o agressor — você não se afastará sem contas!...
Plantou-se à frente de Ernesto e, barrando-lhe o passo:
— Você acreditava que era só acabar comigo, hein? Fique sabendo que, intentando privar-me do corpo, não obteve outra coisa senão colocar-me em sua própria casa... Vivo aqui, moro aqui e sua mulher me per­tence!...
Fantini, de sentimento apurado, qual se achava, depois de tantas refregas, implorou:
— Oh! Desidério! estou arrependido, perdoe-me!...
— Perdoar? Isso nunca. Estou longe do fim. Vo­cês me pagarão, ceitil por ceitil...
Miseráveis!... Vo­cês ocultam aí na Terra o sangue do crime na capa do arrependimento e julgam que conseguem lavá-lo com lágrimas falsas.
Zombeteando:
— Ninguém morre. Vocês, bandidos, que burlam a justiça do mundo, serão punidos pela Justiça Di­vina!... E a Justiça Divina, em meu caso, sou eu mesmo... Espírito vingador, sim... Sou...
E quem me contestará esse direito?
A superexcitação do desventurado provocava nele mesmo o corrompido pranto do ódio, e era igualmente chorando que profligava:
— Cretinos delinqüentes!... Perdi a existência, meu lar, minha esposa, minha filha... e vocês esperam de mim um prêmio à crueldade com que me aniquila-....... Então, vocês exterminam um homem e exigem que esse homem lhes beije as mãos? Abusam da im­punidade com que a terra do sepulcro lhes cobre os atos perversos e ainda reclamam o louvor das vítimas tombadas indefesas?...
Ernesto soluçava...
Ajoelhou-se, de mãos postas, diante do vencido de outro tempo, em sinal de humildade... Ah! se sou­besse que amargas provações lhe combaliriam a alma, nunca teria empreendido o retorno a casa. Saberia tolerar as cruciantes saudades da esposa e da filha, acomodando-se a outros climas de luta!... Entretanto, em dois anos de meditação e de estudo, aprendera que cada espírito recebe da vida, nas Leis de Deus, segundo as próprias obras. Certificara-se de que criatura al­guma logra desertar da própria consciência e que chega invariavelmente para o culpado o dia da expiação e do reajuste. À face disso, recorria, intimamente, ao apoio da prece, suplicando a Jesus lhe revigorasse os ombros para carregar a cruz que ele mesmo talhara com os próprios erros.
À medida que ele se mantinha de joelhos, flectidos na areia da entrada, fitando o céu fulgente de estrelas, Desidério continuava:
— Covarde!... Levante-se para enfrentar as con­sequências de sua falta... Somos agora dois homens, nas mesmas condições, sem a máscara do corpo, qual você me quis, há mais de vinte anos!... Onde estão agora sua prosápia, seu sorriso de mentira, sua arma frouxa?
— Oh! Desidério, eu não sabia!...
— Pois saiba, canalha matador, que estou vivo!...
— Sim, sei... — gemeu Fantini, com estertoroso esgar — e rogo a Deus me perdoe pelo mal que lhe fiz...
— Se Deus existe, estará de meu lado... Você não pode invocar o nome de Deus para acobertar-se...
— Reconheço... mas imploro a você, Desidério...
A frase, porém, desfaleceu na garganta que a dor sufocava.
— Implora o quê?
— Perdoe-me pelo amor que você tem a Elisa e que Elisa lhe tem!... Ignorava que minha esposa o amasse tanto!... Sou um réprobo, bem o sinto... en­tretanto, fiz-me criminoso por muito amar a esposa que o Céu me havia dado!...
O frio interlocutor pareceu comover-se, diante da­quele testemunho de abnegação e humildade, mas, retor­nando à dureza em que se caracterizava:
— Porque não escolheu outro processo para remo­ver-me do caminho? Adotando a violência, nada mais conseguiu senão atirar-me mais intensivamente para os braços de sua mulher... E, enquanto você viveu nesta casa, após acreditar-me morto, partilhei sua mesa e sua vida... Você supunha surpreender-me com os olhos da imaginação, na tela do remorso, mas via realmente a mim, a mim mesmo, Desidério dos Santos, com os olhos da mente, no espelho da consciência...
Hoje, chamam-me os amigos, sem corpo terrestre, de Espírito obses­sor. .. que mais posso ser? Sou quem sou, o homem ultrajado, o empreiteiro de minha própria vingança!...
— Oh! Deus de Misericórdia — lamentou-se Er­nesto —, sou o culpado, o único responsável...
Nesse trecho do diálogo, o amargurado perseguidor desferiu ruidosa gargalhada e refutou:
— Não, não!... Você não é o único... Você fêz a ideia e o modelo do crime que me arredou da existência física, mas o verdadeiro homicida, aquele que se valeu de sua maldade para destruir-me, foi outro... Ignoro a razão, mas tenho o destino entre verdugos!... Você disparou o tiro contra mim, no intuito de afastar-me de sua esposa, e Amâncio, aquele canalha, observando que você errara o alvo, aproveitou a ocasião a fim de eli­minar-me e apossar-se da minha esposa!... Amigos te­nebrosos, companheiros satânicos, quem os reuniu na­quela terrível manhã, à feição de dois monstros, para liquidarem comigo!...
Recolhendo a revelação, não obstante o sofrimento que lhe revolvia as entranhas da alma, Ernesto reme-morou o dia funesto em que ele e os dois companheiros se entregaram à busca de codornas. Desidério, alegre e confiante, Amâncio preocupado com os dois cães espe­cializados na descoberta e no levantamento das presas, e ele, Fantini, ensimesmado, arquitetando o delito.
Recordou que Amâncio se esmerava em conduzir os ca­chorros, absolutamente entretido com os possíveis resul­tados da empresa... Depois de algumas pequenas in­cursões pela mataria, com balázios infrutíferos, Desi­dério escalara um tronco de árvore velha e cravara-se en­tre galhos robustos, de espingarda na mira das aves em vôo... Amâncio, de um lado, e ele, Ernesto, de outro, com reduzidas distâncias entre si. Ao ver Desidério, sondando atentamente um dos pássaros que planava ainda longe, disparara contra ele e recuara espavorido, a ocultar-se no mundo verde, esperando os efeitos do gesto infeliz. Não percebera qualquer grito, mas sim outros tiros que atribuiu, como era óbvio, à arma de Amâncio em ação de caça. Decorridos nada mais que dois a três minutos, escutara os brados do companheiro, clamando por socorro... Alarmara-se, agoniara-se; to­davia, arrastou-se quase até ao local em que o corpo de Desidério se retorcia no fim...
Transtornado, não con­seguia mentalizar coisa alguma que não fôsse o próprio terror, diante do erro cometido e, por isso, aceitou com alívio a versão imediata do amigo que anunciava em alta voz: «acidente horrível!... acidente horrível!...» Acidente!... Não era aquela a suposição ideal para inocentar-se? O parceiro caçador dirigiu-lhe estranho olhar, como quem o responsabilizava sem palavras pela ocorrência, ao mesmo tempo que lhe propiciava mostras de compreensão e simpatia... De chofre, lembrou-se de como a chumbada lograra penetrar sob a mandíbula, ganhando a região cerebral, o que lhe causara enorme estranheza; no entanto, as circunstâncias não lhe per­mitiam quaisquer averiguações... Aprovara a confusão que o favorecia e como que suavizara a dor da própria consciência ao ver que populares amigos compareciam junto dele, em pequenos grupos, adimitindo a tese de desastre casual para o calamitoso acontecimento. Omi­tira deliberadamente todas as dúvidas suscetíveis de im­peli-lo à confissão do próprio delito. E, de alma opressa, recordou-se de que, após o enterro da vítima, desligara-se para sempre de Amâncio, a pretexto de desgosto, e se empenhara, com todas as forças de que dispunha, a olvidar a esposa e a filha pequenina do assassinado cujos gritos, no dia inesquecível, lhe haviam conturbado o coração, convencido qual se achava de que fora ele o réu único...
Transido de assombro, Ernesto verificava que todas as cenas da tragédia se lhe reconstituiam na delicada película da memória, em apenas segundos, e Desidério, como quem o via nos lances mais íntimos daquela desesperada retrospecção, insistia, implacável:
— Lembre-se, miserável!... Lembre-se de como vocês dois, cínicos matadores, me eliminaram... Como afastar-me do corpo inerte, sem detestá-los? Enlouque­cido de sofrimento e revolta, recusei, enojado, os braços piedosos de enfermeiros que me buscaram para que outras terras, não sei... Já que outra vida me surpreen­dia, depois da morte, não a desejava senão para a des­forra... Ainda assim, você não me encontra mais na furiosa aversão dos primeiros tempos, conquanto meu ódio ainda tenha suficientes reservas de fogo e fel para despejar-lhe no Espírito!...
Avalanchas de provação se abateram sobre mim; entretanto, você, o suposto homem de bem, receberá agora, no tribunal da sua consciência, por minha vingança máxima, o peso inexorável de mi­nhas acusações!...
Prosseguindo, num misto de crueldade e pranto, nojo e dor:
— Pense no martírio com que me reaproximei, de­sencarnado, da esposa jovem e da filha ainda tenra, para ver Amâncio, o assassino, senhorear-lhes a existência... Ah! Fantini, acredita você que, a princípio, eu quisesse tanto a sua mulher? Não!... Eu era um homem sem qualquer princípio religioso e, por este motivo, sem qualquer orientação definida. Possuía uma esposa e uma filha que adorava e punha meus olhos sobre Elisa, à maneira de um tolo entusiasmado por ver-se distin­guido pelas atenções de tão devotada e distinta mu­lher... Contudo, ao invés de uma palavra franca de companheiro, capaz de impor-me o lugar justo, você, ralado de ciúme, tentou abater-me como alimária no campo... Com isto, você, Ernesto, me transfigurou numa fera sem a jaula dos ossos.
Abominando o invasor de meu lar, pois Amâncio deu-se pressa em desposar Brígida, a moça que eu deixara viúva e inexperiente, eu sentia em meu antigo refúgio caseiro a presença de um inferno que me expulsava... Batido à maneira de um cão escorraçado e sem dono, sem a companheira que me retirou da lembrança e sem a filha que devia beijar meu algoz por segundo pai, vagueei pelas estradas de ninguém, entre as maltas das trevas, até que me instalei definitivamente ao pé de Elisa, sua mulher, cuja silenciosa ternura me chamava, insistentemente...
Aos poucos, do ponto de vista do espírito, ajustei-me a ela, como o pé ao sapato, e passei a amá-la com ardor, por­que era ela a ünica criatura da Terra que me guardava na memória e no coração...
Ante a pausa de Desidério, que se impunha a curto silêncio para repouso, Ernesto quis implorar piedade, mas não pôde; o verbo esmorecera-lhe na garganta as­fixiada de desespero, enquanto lhe tremiam todas as fibras da alma, qual condenado ouvindo o próprio li­belo, sem possibilidade de qualquer defensiva.
O adversário refizera-se e investia:
— Tudo isso porquê? porque o remorso deformou a sua vida mental de homem... Você, desde a emprei­tada ominosa em que perdi meu corpo, andou buscando incessantemente uma fuga impossível... Mergulhou o espírito em negócios e rendas, compromissos e correta­gens, viajando e viajando, sem procurar saber se a esposa e a sua própria filha eram almas necessitadas de assistência e carinho! Tudo isso fêz de minha afeição por Elisa mais que afeição terrestre!...
Obsessor, oh! sou... Sou... Mas sou também servidor incondicional de quem leva seu nome e agüentou sua frieza de co­ração... Aprendi com sua mulher a paciência e o si­lêncio para esperar e esperar... Você soube, algum dia, das enfermidades de sua filha na infância? conheceu-lhe as duras tentações nos dias primeiros da ju­ventude? sabe que rapazes insensíveis lhe abusaram da confiança? por acaso enxergou, alguma vez, as lágrimas ardentes que lhe queimaram o rosto, depois dos pontapés daqueles mesmos jovens desalmados que lhe prometiam lealdade e ternura?
Ah! Fantini, Fantini!... Você nun­ca desceu à faixa de suplícios do seu mundo doméstico, mas eu sei que calvários foram transpostos pela mulher que envelheceu gemendo e pela outra que se desen­volveu chorando!... A que títulos retornou a esta casa? colher um amor que não plantou? pedir contas?
Ernesto, quebrado de aflição ante o libelo doloroso, conseguiu balbuciar:
— Oh! Desidério!... Compreendo agora... Per­doe-me!.
O antagonista, cada vez mais excitado pelo mar­tírio moral que patenteava em cada frase, retomou o ímpeto:
— Padeci por sua filha e pela outra, a pequenina que a morte me constrangera a largar... Ilaqueada na boa fé pelo patife que lhe absorvera a atenção, Brígida concordou em descartar-se de nossa filhinha, situando-a muito cedo em estabelecimentos de ensino, onde, se é verdade que recebeu educação esmerada, curtiu a falta dos pais, qual se fôsse enjeitada no berço... O que so­fri, Fantini, o que sofri!... Entretanto, minhas agonias não pararam nesses cuidados... Minha infortunada fi­lha, que cresceu triste e moralmente quase desampa­rada, a mingua da assistência paternal que você e Amân­cio lhe furtaram, encontrou a morte, há precisamente dois anos... Impelida pelo padrasto, interessado em livrar-se da responsabilidade de tê-la em custódia, casou-se muito cedo com um celerado que lhe destruiu todos os sonhos... Oh! como trabalhei para evitar-lhe a comunhão com esse homem covarde!... Caminhava in­cessantemente entre os seus e os meus, esmagado de desespero, dedicando-me a conjurar a tragédia que, afi­nal, se consumou... Quando fui vê-la morta, junto de companheiros desencarnados, tão sofredores e tão des­validos quanto eu mesmo, ajoelhei, diante do corpo imó­vel que ainda lhe conservava o derradeiro sorriso, e jurei que me vingaria dos três mascarados que a ro­deavam, Amâncio, o matador, Brígida, a ingrata, e o detestado genro, cuja presença me enoja!... Em lá­grimas, roguei a Deus a graça de ver minha filha li­bertada do sofrimento físico, a felicidade de ouvir-lhe a voz; entretanto, piedosos enfermeiros espirituais me informaram que ela fora conduzida a estâncias de re­pouso e que sômente me será concedido reencontrá-la quando sanar as chagas de revolta que trago dentro de mim, como se me fôsse possível apagar o incêndio de mágoas que me calcina a mente infeliz!... Pobre filha!...
Desposou um criminoso, qual se devesse com­partilhar o meu destino de Espírito, extraviado ...
Ah! como extinguir as labaredas da inconformação que me devora? Impossível!...
Ernesto soluçava...
Dando a idéia de quem se propusesse despejar, de uma só vez, todo o fel que portava na alma ulcerada, sobre o desditoso amigo, Desidério prosseguiu:
— Mas, é preciso que você saiba ainda... Ao notar minha filha abatida e enferma pelos desgostos do lar, o marido lançou-se a novas aventuras e veio a conhecer Vera Celina, sua filha, de cuja afeição se apoderou... Então, dominou-a, escravizou-a...
E, articulando gesto expressivo com o dedo indi­cador, apontou para o interior da casa, acrescentando:
— Este bandido está aí dentro... É Caio Serpa... Ah!... Evelina! Minha filha!... Minha filha!...
Nisso, quando Fantini percebeu toda a trama des­vendada, com a enunciação dos nomes de Evelina e do esposo, sentiu como se o cérebro lhe estalasse de an­gústia. Deslocou-se de um salto e, embora suplicasse a bênção de Jesus e a proteção de Ribas, correu para matagal próximo, entre gritos dificilmente abafados, e rojou-se no solo arenoso da ilha, à maneira de um cão espancado, ganindo de dor.


QUESTÕES PARA ESTUDO E DIÁLOGO VIRTUAL

1) Qual foi a decepção de Ernesto ao retornar ao seu antigo lar?
2) O que gerou a morte de Desidério?
3) O que é obsessão?
4) Por que Desidério era considerado um Espírito obsessor?
5) Em sua opinião, o que Ernesto Fantini pode aprender deste encontro com seu desafeto Desidério?

Um abraço fraterno,
Equipe André Luiz

Conclusão

Centro Virtual de Divulgação e Estudo do Espiritismo – CVDEE

Sala de Estudos André Luiz

Livro em estudo: E a vida continua (Editora FEB)

Autor: Espírito André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier

Tema: Capítulo 20 – Trama desvendada


CONCLUSÃO

1) Qual foi a decepção de Ernesto ao retornar ao seu antigo lar?
Ernesto vê que sua filha tinha muitas queixas em relação a ele, pois acreditava que seu pai embora muito se dedicasse ao trabalho, não lhe dava o apoio afetivo necessário. Além disso, Ernesto é ignorado por sua esposa Elisa que mantém vinculo afetivo com Desidério.

2) O que gerou a morte de Desidério?
Ernesto acreditava que matou Desidério por um tiro ao sentir ciúmes de sua esposa. Mas, a desencarnação de Desidério ocorreu por um outro personagem chamado Amâncio que ao ver que Ernesto erro o alvo, atirou imediatamente e gritou “acidente”.

3) O que é obsessão?
Obsessão é a ação persistente de um espírito em uma pessoa ou Espírito desencarnado com o objetivo de lhe prejudicar.

4) Por que Desidério era considerado um Espírito obsessor?
Desidério não conseguia conformar-se com a sua desencarnação e o fato de sua antiga esposa (Brígida) ter se unido ao seu assassino Amâncio. Sofria também com sua filha (Evelina) ter desencarnado e casado com Caio Serpa.
Por ainda nutrir sentimentos de ódio, queria vingar-se de todos que lhe causaram sofrimento, perseguindo-os.

5) Em sua opinião, o que Ernesto Fantini pode aprender deste encontro com seu desafeto Desidério?
Desidério contou a Ernesto todos os erros cometidos em sua última encarnação e que, embora de um modo doloroso, poderá ser uma grande oportunidade de aprendizado.

Um abraço fraterno,
Equipe André Luiz