E a vida continua

002 – Capítulo 2 – Na porta da intimidade

Centro Virtual de Divulgação e Estudo do Espiritismo – CVDEE
Sala de Estudos André Luiz
Livro em estudo: E a vida continua (Editora FEB)
Autor: Espírito André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier

Tema: Capítulo 2 – Na porta da intimidade


2 - Na porta da intimidade

Não longe surgiu pequeno carro de passeio. Vinha devagar, muito devagar.
Vendo o animal que se aproximava, a passo lento, o cavalheiro disse à dama:
— Compreendo-lhe a necessidade de repouso, mas se aceita uma excursão pelas termas...
— Agradeço — respondeu —, contudo, não posso. Refazimento é agora minha maior terapêutica.
— Efetivamente, nosso caso não comporta sacudi­delas.
A pequena viatura passou rente ao sossegado retiro.
Os dois perceberam a razão da marcha morosa. O veículo fora decerto acidentado e mostrava uma roda partida, avançando dificilmente; enquanto isso, o jovem baleeiro, a pé, guiava o animal com extremado carinho, deixando-o quase livre.
A senhora Serpa e o improvisado amigo seguiram-nos com o olhar, até que desaparecessem na esquina próxima.
Em seguida, Fantini fixou um grande sorriso e enunciou muito calmo:
— Senhora Serpa...
Ela, porém, cortou-lhe a frase com outro sorriso franco e corrigiu, jovial:
— Chame-me Evelina. Creio que, sendo nós irmãos numa doença rara, temos direito à estima espontânea.
— Muito bem!... — acentuou o interlocutor e adu­ziu: — doravante, sou também apenas Ernesto, para a senhora.
Ele deixou cair a mão descorada no encosto do banco enorme e prosseguiu:
— Dona Evelina, a senhora já leu algo de espiri­tualismo?
— Não.
— Pois quero dizer-lhe que a charrete, ainda agora sob nossa observação, me fêz lembrar certos apontamen­tos que esquadrinhei, nos meus estudos de ontem. O interessante escritor que venho compulsando, numa defi­nição que ele mesmo considera superficial, compreende a criatura humana como um ternário, semelhante ao carro, ao cavalo e ao condutor, os três juntos em serviço...
— Como pode ser isso? interrogou Evelina, sub­linhando a palavra de surpresa e gracejando com o olhar.
— O carro equivale ao corpo físico, o animal pode ser comparado ao corpo espiritual, modelador e susten­tador dos fenômenos que nos garantem a existência fí­sica, e o cocheiro simboliza, em suma, o nosso próprio espírito, isto é, nós mesmos, no governo mental da vida que nos é própria. O carro avariado, qual o que vimos aqui, recorda um corpo doente, e, quando um veículo assim se faz de todo imprestável, o condutor abandona-o à sucata da natureza e prossegue em serviço, montando consequentemente o animal para continuarem ambos, no curso de sua viagem para diante... Isso ocorreria, de maneira natural, na morte ou na desencarnação. O cor­po de carne, tornado inútil, é restituido à terra, enquanto que nosso espírito, envergando o envoltório de matéria su­til, que, aliás, lhe condiciona a existência terrestre, passa a viver em outro plano, no qual a roupa de matéria mais densa para nada mais lhe serve...
Evelina riu-se, sem perder embora o respeito que devia ao interlocutor, e alegou:
— Teoria engenhosa!... O senhor me fala da morte, e que me diz desse trio durante o sono?
— Muito razoàvelmente, no sono físico, há des­canso para os três elementos, descanso esse que varia de condutor para condutor, ou melhor, de espírito para espírito. Quando dormimos, o veículo pesado ou corpo carnal repousa sempre, mas o comportamen­to do espírito difere infinitamente. Por exemplo, de­pois de copioso repasto para o condutor e o cavalo, éjusto se imobilizem ambos na inércia, tanto quanto o carro que carregam; entretanto, se o boleeiro se caracteriza por hábitos de estudo e serviço, quando o veí­culo se detém na oficina para reajuste ou reabasteci­mento, ei-lo que utiliza o animal para excursões educa­tivas ou tarefas nobilitantes. De outras vezes, se o condutor é ainda profundamente inábil ou inexperiente, patenteando receio da viagem, sempre que o veículo exija restauração, ei-lo que se oculta nas imediações do posto socorrista, esperando que o carro se refaça, a fim de retomá-lo, à feição de armadura para a própria defesa.
Evelina estampou um gesto de incredulidade e obtem­perou:
— Nada conheço de espiritualismo...
— É profitente de alguma religião particularizada?
— Sim, sou católica, sem fanatismo, mas franca­mente determinada a viver segundo os preceitos de minha fé. Pratico as instruções dos sacerdotes, crendo neles.
— A senhora deve ser louvada por isso. Toda con­vicção pura é respeitável. Invejo-lhe a confiança per­feita.
— Não é religioso, o senhor?
— Quisera ser. Sou um procurador da verdade, livre atirador no campo das ideias...
— E lê espiritualismo por desfastio?
— Por desfastio? Oh! não! Leio por necessidade. Dona Evelina, a senhora esqueceu? Estamos na bica de uma cirurgia que nos pode ser fatal... Nossas malas talvez estejam prontas para uma longa excursão!...
— Da qual ninguém volta.
— Quem pode saber?
— Entendo — ajuntou a dama, sorrindo —, estuda espiritualismo, à maneira do viajante que aspira a co­nhecer o dinheiro, a língua, os costumes e as modas do país estrangeiro que tenciona visitar. Informações re­sumidas, cursos rápidos...
— Não nego. Tenho tido mais tempo ao meu dispor e desse tempo faço hoje os investimentos que posso, nos domínios de tudo o que se relacione com as ciências da alma, principalmente com - aquilo que se refira à sobrevivência e à comunicação com os Espíritos, supostos habitantes de outras esferas.
— E o senhor já encontrou a prova de semelhante intercâmbio? conseguiu mensagens diretas com algum de seus mortos queridos?
— Ainda não.
— Isso, acaso, não lhe desencoraja a busca?
— De modo algum.
- Prefiro as minhas crenças tranquilas. A con­fiança sem dúvida, a oração sem tortura mental...
— Será uma bênção o seu estado íntimo e acato, com todo o meu coração, a sua felicidade religiosa; no entanto, se houver uma outra vida à nossa espera e se a indagação aparecer em sua alma?
— Como pode falar desse modo se ainda não obteve a suspirada demonstração da sobrevivência?
— Não me é possível descrer do critério dos sábios e das pessoas de elevado, caráter, que. a tiveram.
— Bem — explicou-se Evelina bem-humorada —, o senhor estará com os seus pesquisadores, eu ficarei com os meus santos...
— Não faço qualquer objeção, quanto à excelência dos seus advogados — revidou Fantini no mesmo tom —, mas não consigo furtar-me à sede de estudo. Antes da moléstia, reconhecia-me seguro da vida. Comandava os acontecimentos, nem sabia, ao menos, da existência desse ou daquele órgão no meu corpo. Entretanto, um tumor na supra-renal não é uma pedra no sapato. Tem qual­quer coisa de um fantasma, anunciando contratempos e obrigando-me a pensar, raciocinar, discernir...
— Tem medo da morte? — chasqueou a moça, com fina verve.
— Não tanto, e a senhora?
— Bem, eu não desejo morrer. Tenho meus pais, meu esposo, meus amigos. Adoro a vida, mas...
— Mas?...
— Se Deus determinar a extinção dos meus dias, estarei conformada.
- Porventura, não tem problemas? Nunca sofreu a influência dos males que nos atormentam o dia-a-dia?
— Não diga que me vai examinar a consciência; já tenho que dar contas de mim mesma aos confessores.
E rindo-se, desembaraçadamente, reforçou:
— Admito os males que outros nos façam como parcelas do resgate de nossos pecados perante Deus; no entanto, os males que fazemos são golpes que desferimos contra nós mesmos. Supondo assim, procuro preservár-me, isto é, reconheço que não devo ferir a ninguém. Em razão disso, busco na confissão um contraveneno que, de tempos a tempos, me imunize, evitando a explosão de minhas próprias tendências inferiores.
— Admirável que uma inteligência, qual a sua, se acomode com tanto gosto e sinceridade à confissão.
— Certamente preciso saber com que sacerdote me desinibo. Não quero comprar o Céu com atitudes cal­culadas e sim agir em oposição aos defeitos que carrego e, por isso, não seria correto abrir o coração diante de quem não me possa entender e nem ajudar.
— Compreendo...
Retomando o trato intimo, à base de respeitosa confiança, a senhora Serpa considerou:
— Acredite que também eu, ante a enfermidade, tenho vivido mais cuidadosa. Até mesmo na véspera de minha vinda para cá, harmonizei-me com os deveres religiosos. Confessei-me. E das inquietações que confiei ao meu velho diretor, posso dizer-lhe a maior.
— Não, não!... Não me conceda tanto... — tar­tamudeou Fantini, espantado com a devoção carinhosa em que Evelina se exprimia.
— Oh! porque não? Estamos aqui na ideia de que somos amigos de muito tempo. O senhor me fala de suas preparações ante as probabilidades da morte e não me deixa tocar nas minhas?
Desataram-se ambos em riso claro e, quando a pausa mais longa se intrometeu no diálogo, entreolharam-se, de modo significativo. Um e outro fixaram no rosto inequívoca nota de susto.
A mirada recíproca lhes fazia observar que haviam caminhado, a passos compridos, para a intimidade pro­funda.
Onde vira antes aquela jovem senhora que a beleza e o raciocínio tanto favoreciam? — pensava Ernesto, atordoado.
Em que lugar teria encontrado alguma vez aquele cavalheiro maduro e inteligente que tão bem conjugava simpatia e compreensão? — refletia a senhora Serpa, incapaz de esconder o agradável assombro que a do­minava.
O intervalo consumiu segundos inquietantes para os dois, enquanto o crepúsculo, em derredor, acumulava cores e sombras, anunciando a noite próxima.


QUESTÕES PARA ESTUDO E DIÁLOGO VIRTUAL

1) Como podemos compreender o esclarecimento de Ernesto sobre o fato de sermos um ser ternário, “semelhante ao carro, cavalo e condutor”?

2) De acordo com os esclarecimentos de Ernesto, porque o momento do sono é tão importante? O que acontece com o Espírito e corpo físico durante o sono?

3) Ernesto ao estar próximo a cirurgia relata:
“Antes da moléstia, reconhecia-me seguro da vida. Comandava os acontecimentos, nem sabia, ao menos, da existência desse ou daquele órgão no meu corpo. Entretanto, um tumor na supra-renal não é uma pedra no sapato.” Em sua opinião, que tipo de benefícios uma doença pode trazer ao Espírito?

4) Como podemos entender a afirmação de Evelina Serpa a luz da Doutrina Espírita: “Admito os males que outros nos façam como parcelas do resgate de nossos pecados perante Deus; no entanto, os males que fazemos são golpes que desferimos contra nós mesmos.”?

Conclusão

Centro Virtual de Divulgação e Estudo do Espiritismo – CVDEE
Sala de Estudos André Luiz

Livro em estudo: E a vida continua (Editora FEB)

Autor: Espírito André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier

Tema: Capítulo 2 – Na porta da intimidade – Conclusão
QUESTÕES PROPOSTAS PARA ESTUDO

1) Como podemos compreender o esclarecimento de Ernesto sobre o fato de sermos um ser ternário, “semelhante ao carro, cavalo e condutor”?

R – Ernesto faz uma comparação entre a imagem da charrete e a nossa constituição como seres humanos. Explica que, à semelhança da charrete, somos seres ternários, ou seja, compostos de três unidades. Assim, o cocheiro corresponde ao espírito, nossa essência, inteligência que governa a charrete; a charrete corresponde ao corpo físico, instrumento de que se utiliza o cocheiro durante a vida; e o cavalo, que pode ser comparado ao perispírito, elemento intermediário entre os outros dois e imprescindível para que o cocheiro possa se utilizar da charrete. Tal como acontece à charrete que, quando se torna imprestável, é abandonada pelo cocheiro, que prossegue a viagem montando o cavalo, o corpo físico, quando já não atende às necessidades do espírito é abandonado, seguindo ele “montado” em seu perispírito para prosseguir a viagem em um novo corpo.

2) De acordo com os esclarecimentos de Ernesto, porque o momento do sono é tão importante? O que acontece com o Espírito e corpo físico durante o sono?

R – O momento do sono é importante para proporcionar um des­canso aos três elementos. Enquanto o comportamento do corpo físico é sempre o mesmo (repouso), o do espírito varia conforme cada um. Uns se imobilizam e permanecem inertes tal qual o corpo, ligados ao seu perispírito; outros, que cultivam hábitos de estudo ou trabalho, utilizam de seu perispirito para atividades educativas e enobrecedoras, como o cocheiro se utiliza do cavalo enquanto se restaura a charrete; e outros, ainda, há que, não sabendo usar dos momentos de liberdade ou receosos do que lhes pode acontecer, ocultam-se junto ao corpo inerte, esperando o despertamento para retomar suas atividades, tal qual o cocheiro que receia prosseguir a viagem usando o cavalo.

3) Ernesto ao estar próximo à cirurgia relata: “Antes da moléstia, reconhecia-me seguro da vida. Comandava os acontecimentos, nem sabia, ao menos, da existência desse ou daquele órgão no meu corpo. Entretanto, um tumor na supra-renal não é uma pedra no sapato.” Em sua opinião, que tipo de benefícios uma doença pode trazer ao Espírito?

R - Todas as doenças que atingem o nosso corpo físico, quando não decorrentes do desgaste natural provocado pelo tempo, têm a sua origem numa desarmonia espiritual causada pelo próprio espírito. Dentro da visão espírita, o espírito reencarnado é quem mantém a estrutura material e orgânica do corpo que lhe serve. Alguns padrões de pensamentos, sentimentos e atitudes não equilibrados ou não harmônicos podem contribuir para o aparecimento de enfermidades ou dificultar a cura de uma enfermidade de origem puramente material. Esse desequilíbrio, geralmente decorrente de erros que cometemos contrariando as leis naturais, lesiona o perispírito, gravando nele suas matrizes. Lesionado, o perispírito transmite essa lesão ao corpo físico, que funciona, assim, como uma espécie de dreno, eliminando células enfermas e permitindo a sua restauração, através da renovação por meio de células sadias. A doença, portanto, tem a função de depurar o perispírito, permitindo o restabelecimento de um corpo físico saldável. São limitações orgânicas necessárias ao nosso crescer espiritual, como forma de sustar em nós os efeitos de tendências milenares com as quais vimos repetindo os mesmos padrões de comportamento equivocados.

4) Como podemos entender a afirmação de Evelina Serpa à luz da Doutrina Espírita: “Admito os males que outros nos façam como parcelas do resgate de nossos pecados perante Deus; no entanto, os males que fazemos são golpes que desferimos contra nós mesmos.”?

R – Embora praticante da fé tradicional e dogmática, Eveline demonstra sua crença na Justiça Divina através da lei de causa e efeito ensinada pelo Espiritismo, relembrando o ensinamento de Jesus de que “a cada um será dado segundo suas obras”. Por isso conclui que “os males que fazemos ao próximo são golpes que desferimos contra nós mesmos”. Deixa transparecer que começa a aceitar com conformação sua enfermidade, reconhecendo-a consequência de seus próprios equívocos.