Obreiros da Vida Eterna
018 – Desprendimento difícil
Vamos estudar, nesse capítulo, mais uma experiência vivida
por André Luiz na equipe de benfeitores chefiada por Jerônimo. Trata-se de Cavalcante,
que estava prestes a desencarnar, mas que tinha o desprendimento dificultado pelo seu
apego excessivo à vida material.
Texto para estudo
" Agora, tínhamos sob os olhos o caso Cavalcante, em processo final.
O pobre amigo permanecia agarrado ao corpo pela vigorosa vontade de prosseguir
jungido à carne. A intervenção no apêndice inflamado, ao mesmo tempo que se buscava
remediar a situação do duodeno, fizera-se tardia. Estendera-se a supuração ao peritônio
e debalde se combatia a rápida e espantosa infecção.
O enfermo perdia forças, e porque não conseguia alimentar-se, como devia, não
encontrava recursos para compensar as perdas vultosas."
" Reconhecia, entretanto, ali, naquele agonizante que teimava em viver de qualquer
modo no corpo físico, o gigantesco poder da mente, que, em admirável decreto da
vontade, estabelecia todo o domínio possível nos órgãos e centros vitais em decadência
franca.
Decorridos mais de quatro dias, em que atentávamos para o moribundo,
cuidadosamente, Jerônimo deliberou fossem desatados os laços que o retinham à esfera
grosseira.
Bonifácio, prestimoso e gentil coadjuvava-nos o trabalho.
Informando-se de nossa resolução, de modo vago, através dos canais intuitivos, o
doente, pela manhãzinha, chamou o capelão, a fim de ouvi-lo, ..."
" - Padre - dizia ele, em voz súplice - sei que morro, sei que estou no fim...
- entregue-se a Deus, meu amigo. Só ele pode saber em definitivo o que surgirá.
Quem sabe se ainda tem longos anos à sua frente? tudo pode acontecer...
- Ouça, padre!... acredita que me salvarei?
- Sem dúvida. Você foi sempre bom católico...
- Mas... escute! ... Segundo lhe confessei, fui abandonado pela mulher, há muitos
anos...Sabe que ela me trocou por outro homem e fugiu para nunca mais... Sempre
admiti que experimentei semelhante prova por incapacidade de compreensão da parte
dela, mas, agora, padre... encarando a morte, frente a frente, reflito melhor... Quem sabe
se não fui o culpado direto? Talvez tivesse levado longe demais meu propósito de viver
para a religião, faltando-lhe com a assistência necessária..."
" O religioso intentou sair, mas Cavalcante, amedrontado, perguntou, aindä:
- Acha que domorarei muito tempo no purgatório?
- Que idéia! - resmungou o interlocutor, entediado - falta-lhe suficiente confiança no
poder de Deus?
Enunciou as últimas palavras com tamanha irritação que o enfermo lhe percebeu o
descontentamento, sorriu humilde e calou-se.
O sacerdote, ao se afastar, aliviado, encontrou certo médico e indagou:
- Afinal, que acontece ao Cavalcante? morre ou não morre? Estou cansado de tantos
casos compridos.
- Tem sido gigante na reação - informou o clínico, bem humorado. - Considerando-lhe,
porém, os males sem cura, venho examinando a possibilidade da eutanásia."
" A cena chocava-me pelo desrespeito. Ambos os profissionais, o da Religião e o
da Ciência, notavam situações meramente superficiais, incapazes de penetração nos
sagrados mistérios da alma. Entretanto, para compensar tão descaridosa incompreensão, Cavalcante era objeto de nosso melhor carinho. ...
Quando o eclesiástico pisava mais longe, o meu Assistente considerou:
- O pobre sacerdote ainda não possui "olhos de ver". Cavalcante foi, antes de tudo,
perseverante trabalhador do bem."
" A doutrina que abraçara não lhe oferecia ensejo de mais vasta aplicação ao
exemplo evangélico. Era compelido a satisfazer obrigações convencionais e a perder
grande tempo através de manifestações do culto externo; entretanto, valera-se de toda
oportunidade para testemunhar entendimento cristão. Porque amara o exercício do bem,
constante e fiel, era aborrecido aos sacerdotes e familiares em geral. A parentela,
inclusive a esposa, considerava-o fanático, desequilibrado, imprestável. Perseverava
mesmo assim. Embora as condições elevadas em que desenvolvera a fé, ignorava as
lições do Além-Túmulo e receava a morte. ..."
" O Assistente, pondo em prática recursos magnéticos, tentou propiciar-lhe sono brando,
de maneira a subtrair-lhe os temores sem socorro direto, fora do corpo físico. Contudo o
moribundo lutou por manter-se vigilante. Temia dormir e não despertar, pensava, ansioso.
Queria ver a esposa, antes do fim, dizia de si para consigo. Não era, efetivamente, provável?
não seria justo morrer tranqüilo? Oh! se ela surgisse! - acariciava a possibilidade -
penitenciar-se-ia dos erros passados, pedir-lhe-ia perdão. ..."
" - Desventurado irmão! - comentou Bonifácio, comovido - não sabe que a consorte
desencarnou há mais de ano, num catre, vítima de uma infecção luética.
... Meu Assistente, como se houvera recebido a mais natural das informações, dirigiu
a palavra ao companheiro, recomendando:
- Bonifácio, nosso amigo não pode suportar por mais tempo a existência do corpo carnal.
A máquina rendeu-se. ... Já tentamos auxiliá-lo a desprender-se, afrouxando os laços da
encarnação no plexo solar, mas ele reage com espantoso poder. ... Peço a você trazer-lhe
a companheira desencarnada, por instante, até aqui. ... Verá, desse modo, a esposa, antes
do decesso que se aproxima e dormirá menos inquieto."
" A enfermaria estava repleta de cenas deploráveis. Entidades inferiores, retidas pelos
próprios enfermos, em grande viciação da mente, postavam-se em leitos diversos,
infligindo-lhes padecimentos atrozes, sugando-lhes vampirescamente preciosas forças,
bem como atormentando-os e perseguindo-os.
Desde o serviço inicial do tratamento de Cavalcante, desagradaram-me tais
demonstrações naquele departamento de assistência caridosa e cheguei mesmo a
consultar o Assistente quanto à possibilidade de melhorar a situação, mas Jerônimo
informou, sem estranheza, que era inútil qualquer esforço extraordinário, pois os próprios enfermos, em face da ausência de educação mental, se incumbiriam de chamar
novamente os verdugos, atraindo-os para as suas mazelas orgânicas, só nos competindo
irradiar boa-vontade e radicar o bem, tanto quanto fosse possível, sem, contudo, violar as
posições de cada um."
" Não se passou muito tempo e Bonifácio entrou conduzindo verdadeiro fantasma. A
ex-consorte, convocada à cena, semelhava-se, em tudo, a sombra espectral. Não via
o nosso cooperador, mas obedecia-lhe à ordem. Penetrou o recinto, arrastando-se,
quase. Satisfazendo o guia, automaticamente, veio ter ao leito d Cavalcente, fitou-o com
intraduzível impressão de horror e gritou, longamente, perturbando-lhe a hora de alívio.
O moribundo voltou-se e viu-a. Alegre sorriso estampou-se-lhe no escavadeiro rosto.
- Pois és tu, Bela? Graças a Deus, não morrerei sem pedir-te desculpas!...
- Joaquim, perdoa-me, perdoa-me!...
- Perdoar-te de quê? - replicou ele, buscando inutilmente afagá-la. Eu, sim, fui injusto
contigo, abandonando-te ao léu da sorte... Por favor, não me queiras mal. ... Não entendi
o problema doméstico tanto quanto devia... Desculpa-me..."
" Nesse instante, o mesmo médico que víramos pela manhã, avizinhou-se do leito para
a inspeção noturna, acompanhado de diligente enfermeira.
Chamado por ele, voltou-se Cavalcante e, pondo na boca todas as forças que lhe
restavam, notificou, feliz":
- Veja, doutor, minha esposa chegou, enfim!
E, interessado em conquistar a atenção do interlocutor, prosseguia:
- Estou contente, conformado...Mas minha pobre Bela parece enferma, abatida...Ajude-a
por amor de Deus! ...
O médico, no entanto, contemplou-o, compadecido, e disse à servente:
- É o delírio, precedendo o fim.
Entrementes, Jerônimo recomendou a Bonifácio retirasse a sombria figura da ex-consorte
de Cavalcante, acentuando:
- Não nos convém doravante a permanência de semelhante criatura. ..."
" Reparando, porém, que a ex-companheira se afastava aos gritos, o agonizante pôs-se
a bradar, alucinado:
- Volta, Bela! Volta!
Esforçou-se o clínico por trazê-lo à esfera de observações que lhe era própria, mas
debalde. Cavalcante continuava invocando a presença da esposa, em voz rouquenha, opressa, sumida.
O médico abanou a cabeça e exclamou quase num sussurro:
- É impossível continuar assim. Será aliviado.
" ... Sem qualquer conhecimento das dificuldades espirituais, o médico ministrou a
chamada "injeção compassiva", ante o gesto de profunda desaprovação do meu orientador.
Em poucos instantes, o moribundo calou-se. Intereiçaram-se-lhe os membros,
vagarosamente. Imobilizou-se a máscara facial. Fizeram-se vítreos os olhos móveis.
Cavalcante, para o espectador comum, estava morto. Não para nós, entretanto. A
personalidade desencarnante estava presa ao corpo inerte, em plena inconsciência e
incapaz de qualquer reação."
" E, conforme a primeira suposição de Jerônimo, somente nos foi possível a libertação
do recém-desencarnado quando já haviam transcorrido vinte horas, após serviço muito
laborioso para nós. Ainda assim, Cavalcante não se retirou em condições favoráveis e
animadoras. Apático, sonolento, desmemoriado, foi por nós conduzido ao asilo de Fabiano,
demonstrando necessitar maiores cuidados."
Bibliografia
1.- O Livro dos Espíritos - questões 154 a 163 e 941 a 942;
2.- O Evangelho Segundo o Espiritismo - capítulo V, ítem 28 e capítulo X,
ítens 5 6;
3.- O Céu e o Inferno - capítulo II.
Questões para estudo e debate
1.- Sendo Cavalcante devotado à religião, assim como Dimas e Fábio, por que, ao
contrário destes, temia a morte?
2.- Por que não devemos temer a morte e o que fazer para não temê-la?
3.- Qual a importância da visita da ex-exposa antes da desencarnação de Cavalcante?
4.- Ainda encarnado, nos últimos instantes da vida material, pode o espírito ver o mundo
espiritual, mesmo não sendo médium?
5.- Por que o instrutor Jerônimo reprovou a solução adotada pelo médico terrestre para
a desencarnação de Cavalcante?
6.- Em que condições se procedeu o desenlace de Cavalcante de seu corpo físico? Por
que?
Conclusão
1.- Sendo Cavalcante devotado à religião, assim como Dimas e Fábio, por que, ao
contrário destes, temia a morte?
Porque, embora devotado à prática religiosa, ao contrário de Dimas e Fábio,
Cavalcante não recebera correta orientação sobre o que é a vida após a morte. Católico,
foi-lhe ensinado que, após o desenlace, seria levado ao purgatório, ao céu ou ao inferno,
de acordo com seu comportamento em vida. Embora tivesse vivido para o bem, não se
sentia confiante quanto ao que lhe aconteceria. Receava que seu procedimento em relação
à ex-esposa pudesse lhe acarretar um "julgamento" desfavorável, que o levasse para o
purgatório.
2.- Por que não devemos temer a morte e o que fazer para não temê-la?
Porque a morte do corpo físico nada mais é do que a porta de passagem para um
novo tipo de vida, fora da matéria. A vida futura hoje é uma realidade, não mais uma
esperança. Por isso, devemos aguardar a morte com serenidade, com a certeza de que
ela virá, mais cedo ou mais tarde e que a vida futura é uma simples continuação da vida
terrena. É necessário que, ainda no plano físico, tomemos consciência de que a verdadeira
vida é a do espírito e que a existência terrena não passa de um estágio para nosso
aprendizado, uma oportunidade para nossa evolução. O conhecimento dessa verdade é a
forma mais eficaz para que não tememos a morte.
3.- Qual a importância da visita da ex-esposa antes da desencarnação de Cavalcante?
Jesus nos ensinou que devemos nos reconciliar com nosso adversário enquanto
estamos com ele a caminho (Mateus, 5.25). Cavalcante tinha sua ex-esposa como tal,
pois ela o abandonara para viver com outro. Com a reconciliação, tendo ambos se perdoado mutuamente, pôde tirar esse ressentimento de seus pensamentos, desencarnando sem
levar para o outro plano essa animosidade.
4.- Ainda encarnado, nos últimos instantes da vida material, pode o espírito ver o mundo
espiritual, mesmo não sendo médium?
Pelo exemplo descrito em mais essa experiência trazida por André Luiz, vemos que
sim. Nos últimos instantes, quando já se encontra mais fora da matéria do que a ela
preso, mesmo estando apegado ao corpo físico, começa o espírito a vivenciar a vida
espiritual que se aproxima. É o que comumente se chama de "delírio final". Os que
desconhecem a vida espiritual consideram que o desencarnante está delirando e que as
visões ou conversas que relata são fruto do delírio. Na realidade, são os primeiros contatos
com a nova vida.
5.- Por que o instrutor Jerônimo reprovou a solução adotada pelo médico terrestre para
a desencarnação de Cavalcante?
Numa ótica exclusivamente materialista, o médico que assistia Cavalcante decidiu
abreviar sua existência física, como forma de aliviar seu sofrimento. Esse procedimento,
porém, contraria frontalmente a lei de Deus, de quem o homem não pode prejulgar os
desígnios. Em "O Evangelho Segundo o Espiritismo", no capítulo V, há uma instrução
do Espírito S. Luís, em que ele ensina que se deve minorar "...os derradeiros sofrimentos,
quanto o puderdes; mas, guardai-vos de abreviar a vida, ainda que de um minuto, porque
esse minuto pode evitar muitas lágrimas no futuro."
6.- Em que condições se procedeu o desenlace de Cavalcante de seu corpo físico? Por
que?
Cavalcante somente conseguiu se libertar do corpo físico após vinte horas da morte
deste. Retirou-se do corpo em condições precárias, necessitando, segundo o relato de
André Luiz, dos maiores cuidados, pois foi levado para a Casa Transitória "...apático,
sonolento, desmemoriado...". Os motivos desse estado de desequilíbrio foram a falsa
idéia que fazia da morte e o seu apego à vida terrena, causado pelo temor da morte.