O Mundo Maior

018 – Velha afeição

Não havíamos atravessado grandes distância, quando curiosa assembléia de velhinhos se postou ao nosso lado.

Mostravam todos carantonhas de aspecto lamentável. Esfarrapados, esqueléticos, traziam as mãos cheias de substância lodosa que levavam de quando em quando ao peito, ansiosos, aflitos. Ao menor toque de vento, atravacam-se aos fragmentos de lama, colocando-os de encontro ao coração, demonstrando infinito receio de perdê-los....

Um deles observou em voz rouquenha:
- Precisamos de alguma saída. Não podemos com delongas. E nossos negócios? nossas casas? Incalculável é a riqueza que descobrimos...
E indicava com ufania os punhados de lodos a escorregar-lhe das mãos aduncas.
- Mas... - prosseguia, pensativo - todo este ouro, que temos conosco, permanece à mercê de ladrões, nesta miserável charneca.

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Escutando a singular personagem, dirigi interrogativo olhar a Calderaro, que me esclareceu, atencioso:
- São usuários desencarnados há muitos anos. Desceram a tão profundo grau de apego à fortuna material transitória, que se tornaram ineptos ao desequilíbrio na zona mental do trabalho digno, por incapazes de acesso ao santuário interno das aspirações superiores.

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Lamentei-os sinceramente ao que Calderaro obtemperou:
- Enlouqueceram na paixão de possuir, acabando a sinistra aventura escravos de monstros mentais de formação indefinível.

Dispunha-me a redarguir, quando um dos anciães alçou a voz no estranho concerto, exclamando:
- Amigos, não seremos vítimas dum pesadelo? às vezes, chego a supor que estamos equivocados. Há quanto tempo deambulamos fora do lar? onde estamos? não teríamos enlouquecido?!..
Oh! aquela voz! escutando-a, pavorosa dúvida se apoderou de mim. Quem estaria louco? interrogava, agora, a mim mesmo. Aquele velho ou eu?
Fixei-lhe os traços. Oh! seria possível? Aquele Espírito desventurado recordava meu avô paterno Cláudio. Afeiçoara-se a mim desde os meus mais tenros anos.

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No curso do tempo, vim a saber que meu avô deixara valioso patrimônio financeiro, que nós, seus parentes, dissipávamos em nababescas fantasias..
Tornando ao pretérito, reconheci que vigoroso laço me unia àquele desgraçado que ainda sofria o pesadelo do ouro terrestre, carregando placas de lodo que premia enternecidamente ao coração.
Enquanto as reminiscências me enchiam aquele instante, gritava-lhe um companheiro infeliz:
- Pesadelo? nunca, nunca! Ó Cláudio, não te sensibilizes tanto!...
- Ah! seu nome fora pronunciado. A confirmação estarrecera-me; quis gritar, mas não pude. Compreendendo quanto ocorria em meu íntimo, o prestativo Calderaro amparou-me, assegurando:
- André, já sei de tudo. Entendo agora a significação de tua vinda a estas paragens: Irmã Cipriana tinha razão. Não temos tempo a perder. O velho revela-se receptivo. Começou a entender que provavelmente estará em erro, que talvez respire atmosfera de pesadelo cruel. Ajudemo-lo. Urge auxiliar-lhe a visão, para que nos enxergue.
Aflito, segui o dedicado orientador que passou a aplicar recursos fluídicos sobre os olhos embaciados de meu desditoso ascendente. A entidade, com o providencial afluxo de força, ganhou provisória lucidez e viu-nos, afinal.

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E esfregando os olhos, acrescentava, dirigindo-se a nós:
- Donde vindes? sois padres?
Certo, aludia às túnicas muito alvas com que nos apresentávamos.
Avancei, lento e indaguei:
- Meu amigo, sois Cláudio M...., antigo fazendeiro nas vizinhanças de V.....?
- Sim, conheceis-me? quem sois?
Em atitude de alívio, ajuntou com inflexão comovente:
- Desde muito estou preso nesta região misteriosa, repleta de perigos e de monstros, mas abundante de ouro, de muito ouro... Vossa palavra me reanima... Oh! por piedade! ajudai-me a sair... Quero voltar...
E, ajoelhado agora, de braços estendidos para mim, repetia:
_Voltar..., rever os meus, sentir-me em casa novamente!
Abracei-o, compungido, e sem desejar chocá-lo com inoportunas revelações, expliquei-me:
- Cláudio M..., sois vítima de lamentável engano. Vossa casa antiga cerrou-se com os olhos físicos que já desapareceram! Encarceraste o espírito num sonho vão de mentirosas riquezas. A morte vos arrebatou a alma do domicílio carnal, vai para mais de quarenta anos.

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Meu avô começou a contemplar as massas de lama que sobraçava, e gritou, aterrorizado. Em seguida, pousando em mim os olhos lacrimosos, considerou:
- Será castigo? Minha falta para com Ismenia exigia punição...

............
- A quem vos referis?
- A minha irmã, cujos direitos espezinhei.

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...........Ao morrer, meu pai confiou-me uma irmã que não era filha legítima de nossa casa. Minha mãe, dedicada e santa, criou-a com o mesmo infinito desvelo que a mim mesmo. Quando me vi, porém sozinho, escorracei-a do ambiente doméstico. Provei que não partilhava meus laços consanguíneos, para melhor assenhorear-me da fortuna que meu pai nos legara. A pobrezinha implorou e sofreu; entanto, releguei-a a miserável destino, cioso da sólida base financeira que havia conseguido. Fiquei rico, multipliquei os cabedais, ganhei sempre...

Ia consolá-lo, abrir-lhe o coração comovido até às lagrimas; Calderaro, porém, fez-me imperioso gesto, recomendando-me silencio.

...................
Alongando os braços ressequidos, suplicava:
- Tende piedade de mim! Meus pais foram levados ao túmulo, há muitos anos, e meus filhos, certamente, me esqueceram... Estou desprezado, sem ninguém. Valei-me, emissário do Eterno! não abandoneis um ancião traído em suas ambições e propósitos! agora, que me reconheço, tenho medo, muito medo...
.
...........
- Meu neto André Luiz era a luz de meus olhos. Muitas vezes, os carinhos dele me aquietavam o torturado pensamento. Em muitas ocasiões manifestei, em casa, o desejo de que ele se consagrasse à medicina. Destinei-lhe um legado para esse fim. Pretendia vê-lo fazendo o bem que eu, homem ignorante, não soubera praticar............................ Seria o benfeitor dos pobres e dos doentes, espargiria sementes dadivosas onde minha existência inútil espalhara pedras e espinhos de insensatez. Meu neto seria belo, querido, respeitado..
Enxugando as copiosas lágrimas, indagava em voz súplice, com a atenção presa a meus gestos:
- Quem sabe se vós, mensageiros de Deus, poderíeis levar a meu neto a tremenda notícia dos males que me devoram? Não mereço o afastamento destas masmorras em que enlouqueci, mas ser-me-á consolo saber que André tem ciência dos meus padecimentos!
Ah! não mais valeram sinais do Assistente Calderaro para que me contivesse, esperando ainda mais. Meu peito como que rebentara numa torrente de pranto irreprimível. Ali, não me achava ante assembléia superiores, cujas emissões de energia me sustentassem até o fim no combate educativo da autodisciplina, mas diante dos deploráveis remanescentes das paixões terrestres. Lembrei-me do meu avô, acariciando-me os cabelos; recordei que meu genitor sempre aludia aos desejos do velho, com referência à minha preparação acadêmica...
Pensei nos longos anos que o mísero teria gasto, ali, agarrado às idéias de posse financeira; compreendi a extensão de meu débito para com ele com relativamente ao diploma de médico que eu não soubera honrar no mundo... Dirigi súplice olhar a Calderaro, rogando-lhe me perdoasse...
O Assistente sorriu e entendeu tudo.

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Tornando mentalmente a cenários da infância longínqua, senti-me novamente menino; venci de um salto o espaço que nos separava e ajoelhei-me aos pés do meu desventurado benfeitor, que me observava, agora, trêmulo e assustado. Cobri-lhe aos mãos de beijos e erguendo para ele os olhos lacrimosos, perguntei:
- Vovô Cláudio, pois o senhor não me conhece mais?
Impossível seria descrever o que se passou.
Esqueci, por momentos, os estudos que me impusera a fazer; olvidei os quadros daquele ambiente, que provocavam curiosidade e pavor. Meu espírito respirava o reconhecimento sincero e o amor puro; e, enquanto, as míseras entidades emuradas na usura gritavam, revoltadas, umas, e riam outras à sorrelfa, incapazes de compreender a cena improvisada, eu, amparado por Calderaro, que também enxugava lágrimas discretas, diante da comoção que me assaltara, sustentei meu avô nos braços, como se transportara, louco de alegria, precioso fardo que era doce e leve ao coração.


Questões iniciais para o estudo :


1 - Qual a razão que levou essa assembléia de velhinhos a este lastimável aspecto ?


2 - Por que o avô de André Luiz sentia que era merecedor daquele sofrimento?


3 - A riqueza herdada de maneira legítima e honesta pode ser considerada, como a miséria, como prova? Por que?


4 - "o dedicado orientador que passou a aplicar recursos fluídicos sobre os olhos embaciados de meu desditoso ascendente",
justifique a necessidade deste processo aplicado por Calderaro ao avô de André Luiz.


5 - Por que André Luiz se sentia endividado com o espírito do avô? Qual o sentimento que finalmente o envolveu?

Bibliografia básica:

Leitura do capítulo completo do Livro No Mundo Maior
LE
ESE

Conclusão

Prosseguindo a excursão pelas regiões de sofrimento, André Luiz
e o instrutor Calderaro encontraram-se com uma assembléia de anciãos.

- São usurários desencarnados há muitos anos, explicou o
instrutor. Espíritos que "desceram a tão profundo grau de apego à fortuna material
transitória, que se tronaram ineptos ao equilíbrio na zona mental do trabalho digno,
por incapazes de acesso ao santuário interno das aspirações superiores."

Em meio à reunião, uma surpresa: André Luiz encontra seu avô,
desencarnado há quarenta anos, constatando seu deplorável estado de perturbação
e sofrimento. Interessantes reações psicológicas se desenvolvem, dando ensejo ao
início do processo de reforma do sofredor.


QUESTÕES PROPOSTAS PARA ESTUDO


1 - Qual a razão que levou essa assembléia de velhinhos a este lastimável aspecto?

Aqueles espíritos se encontravam em tal estado de sofrimento devido às
perturbações que lhe causaram o apego aos bens materiais terrenos. Como explicou
o instrutor Calderaro, tratava-se de verdadeiros usurários, que, por se encontrarem
fortemente apegados à fortuna material transitória de que usufruíram na Terra, não
conseguiam alcançar o equilíbrio mental que lhes permitiria ter aspirações superiores.

Os males causados a seus semelhante por suas ações desonestas imprimiram
às suas vítimas tamanhos sofrimentos que elas agora emitiam matéria mental eivadas
de desejos de vingança e de maldição, o que lhes deixava atordoados e presos à
lembrança dos delitos do passado. O grau de perturbação era tanto que chegavam a
ter miragens de ouro, quando se encontravam num deserto pantanoso de sofrimentos.


2 - Por que o avô de André Luiz sentia que era merecedor daquele sofrimento?

Porque em sua última passagem pela carne agiu de forma desonesta e desumana
para com sua irmã adotiva, expulsando-a de casa após o desenlace de seus pais.
Sua atitude atirou a pobre vítima na miséria, relegando-a a penosas experiências,
enquanto ele acumulava riqueza.

Agora, despojado da matéria, não mais se encontrando com os sentimentos
embaçados pela veste corporal, o espírito passa a ver a vida de uma maneira diferente,
sem a influência dos interesses materiais. A presença do neto fez despertar sua
consciência, que o condenava implacavelmente e lhe fazia sentir-se merecedor
daquele estado de sofrimento por que passava.


3 - A riqueza herdada de maneira legítima e honesta pode ser considerada, como a
miséria, como prova? Por que?

Allan Kardec, em "O Evangelho Segundo o Espiritismo", no capítulo XVI, ensina
que tanto a riqueza como a miséria são provas por que o espírito tem que passar
para alcançar o seu aperfeiçoamento. Ressalta o Codificador que, pelas tentações
que gera e pela fascinação que exerce, a riqueza é uma prova mais difícil de ser
vencida do que a miséria. Todavia, não se constitui obstáculo absoluto ao progresso
do espírito, posto que Deus não a teria criado para servir de instrumento de perdição.


4 - "o dedicado orientador que passou a aplicar recursos fluídicos sobre os olhos
embaciados de meu desditoso ascendente". Justifique a necessidade deste processo
aplicado por Calderaro ao avô de André Luiz.

O estado mental em que se encontrava o avô de André Luiz era de absoluta
perturbação, não permitindo que ele visse os dois benfeitores espirituais. Quando o
espírito freqüenta uma faixa vibratória muito baixa, é-lhe impossível ver ou mesmo
sentir a presença de espíritos de nível evolutivo superior, face à nebulosa psicosfera
que o cerca.

Nessas situações, os espíritos superiores, quando entendem que convém aos que
se encontram naquele estado lhes perceberem a presença, dispõem de recursos
fluídicos como os que Calderaro utilizou para restituir a capacidade de visão.


5 - Por que André Luiz se sentia endividado com o espírito do avô? Qual o sentimento
que finalmente o envolveu?

Além dos vínculos afetivos que revelou haver existido entre ambos,Cláudio, seu avô,
foi quem lhe proporcionou condições materiais para que concluísse o estudo da medicina,
através dos recursos financeiros que amealhou. Reconhecia isso e se sentia devedor de
gratidão.

André Luiz deixou-se envolver, então, pelo sentimento de reconhecimento e amor
sincero ao espírito que fora seu avô. A paixão terrena retornou ao seu interior de maneira avassaladora. Diante disto, não teve como resistir aos impulsos sentimentais, pois não
se encontrava ali em meio a espíritos superiores, cujas emissões de energia dariam sustentação à sua autodisciplina.