E a vida continua

019 – Capítulo 19 – Revisões da vida

Centro Virtual de Divulgação e Estudo do Espiritismo – CVDEE

Sala de Estudos André Luiz

Livro em estudo: E a vida continua (Editora FEB)

Autor: Espírito André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier

Tema: Capítulo 19 – Revisões da vida

Estudos

Os dois amigos desencarnados ignoravam como de­finir a estupefação que os empolgara.
Fantini, desarvorado, recordou-se, num átimo, da casa rústica que possuía na praia, e, sem pestanejar, convidou Evelina a tomarem juntos o carro acolhedor, na poltrona traseira.
Amargas conclusões passaram a dominá-lo.
Então, aquela era a jovem a que tanta vez se repor­tara a senhora Serpa!... Vera Celina! Sua própria filha!...
O auto começou a deslizar e lágrimas grossas lhe molhavam a face.
A companheira, como a reconfortá-lo sem palavras, segurou-lhe a mão num gesto de carinho.
Percebia-lhe a dor de pai. Ele fitou-a pelo véu de pranto e disse apenas:
— Entende como sofro?
— Acalme-se — sussurrou Evelina, compassiVa —, somos agora mais irmãos.
Transcorridos alguns momentos sobre a arrancada, os ocupantes da frente iniciaram a troca de impressões quanto a banalidades da marcha, até que um e outro assinalaram mentalmente a influência dos acompanhan­tes invisíveis.
Lembrando-se, às súbitas, de Evelina, a rival ar­riscou uma alegação:
— Caio, às vezes cismo indagando de mim mesma se você não é um apaixonado pela memória de sua es­posa...
— Eu? era o que faltava...
— Sempre ouço, em torno dela, as melhores refe­rências.
— Não era má.
— E você não tem saudades, não a sente no coração?
Caio riu-se e mofou:
— Não tenho vocação para conviver com os mortos.
— Não digo isso. Quero falar de sua mágoa na­tural ao perdê-la.
— Você sabe que Evelina estava morta para mim, muito antes que o médico lhe atestasse o óbito...
— Em muitas ocasiões, surpreendo-me, ao ana­lisar-lhe o retrato... Aquela fisionomia doce, aqueles olhos grandes e tristes... Impossível que você não houvesse casado por amor!...
— Sim, casei-me por amor; no entanto, a vida tem as suas sequências. Primeiro, a paixão e, muitas vezes, depois... o desinteresse.
— Mas, você pode precisar o motivo pelo qual se desencantou?
— Você quer saber?
— Sim.
— Bem, guardava a ambição de ser pai; Evelina, porém, era fraca, doente. Creio que carregava taras de família. Enquanto não abortou, não lhe vi os defeitos... Entretanto, depois que se revelou enferma e incapaz, o laço do casamento se fêz para mim pesado demais... Nos últimos tempos da vida, era mulher rezadeira e chorona...
Ao fim de risada franca:
— O remédio era inventar viagens para estar com
você...
A senhora desencarnada apoiava-se mais fortemente em Ernesto, buscando escora para suportar com denodo semelhantes irreverências.
Vera, dando a ideia de quem não desejava des­cambar para o desrespeito, desviou o rumo da conver­sação, perguntando:
— Caio, não poderemos, por nossa vez, sonhar com uma casa enriquecida de filhos?
Ele lançou-lhe rápido mas expressivo olhar, furtado ao volante, e contestou:
— Depende...
— Depende de quê?
— Quanto a casar, sei que nos casaremos, mas pen­se, Vera. Negócio de criar filhos não é brincadeira. A saúde de sua mãe não me encoraja, aquelas manias, aquelas crises.
Qual se fora sacudido pelos pensamentos do sogro desencarnado a se lhe projetarem na mente, partindo da retaguarda, Serpa contrapôs:
— Que me diz de seu pai?
A jovem perspicaz lembrou-se imediatamente de que o genitor encontrara a morte em condições idênticas às da senhora Serpa, mas, temendo falar nisso, mentiu com intenção, asseverando:
— Meu pai era homem robusto, de saúde impe­cável, sempre moço, passava, para muita gente, como sendo meu irmão...
— Que lhe teria marcado o fim?
— Operou-se de umas verrugas sem importância e não teve o cuidado preciso. Antes da cicatrização perfeita, começou a cavoucar no jardim, cortou-se e adqui­riu a infecção que o levou...
— Tétano?
— Isso mesmo.
— Psiquicamente, como era ele?
— Um homem muito inteligente e, às vezes, fol­gazão qual você mesmo, embora tomasse a vida muito a sério...
— Compreendo que ele terá tido por você uma afeição toda especial. Filha única!...
— Engana-se. Meu pai decerto que me estimava, mas era corretor de muitas atividades, ocupadíssimo, quase sem tempo para a casa... A não ser a criatura providencial, do ponto de vista econômico, que se esme­rava para que o dinheiro não nos faltasse, como pai não me lembro de algum dia em que se sentasse ao meu lado para ouvir-me ou aconselhar-me em assuntos do coração... E nos meus casos de menina, bem que necessitei, mas...
— Não dispunha de uma hora ou outra para isso?
— Pelo menos, era o que dizia, nunca pude contar-lhe nem mesmo os meus problemas de colégio...
Fantini escutava, acusando-se humilhado, abatido, a confessar para si próprio que daria quanto lhe fôsse possível, a fim de voltar atrás, de modo a ser para a filha o pai afetuoso e vigilante que não buscara ser.
O diálogo, porém, prosseguia:
— Certamente, em compensação, você contou com o carinho materno...
— Também não. Desde cedo, percebi que minha mãe é irritadiça, desanimada. Gosta de estar só e, conquanto não me negue atenção, até hoje manda que eu me decida, em tudo, por mim mesma.
— Ela e seu pai viviam bem?
— Nada disso. Minha mãe, aos meus olhos, sem­pre pareceu tolerar meu pai, sem amá-lo, embora se esforçasse, diante dele, para mostrar o contrário.
— O infeliz chegava a perceber? — tornou Caio, galhofando.
— Acredito que não.
— Como explica você a perturbação da velha, de­pois que ele se foi? não será isso a dor de perdê-lo?
— Duvido... Assim que meu pai morreu, ela foi tomada de terrível transformação, como se o odiasse às ocultas. Queimou-lhe os objetos de estima, quebrou-lhe o relógio de bolso, rasgou-lhe os retratos... Ima­gine .... Nem orações quis por ele... E foi piorando, piorando... Agora, é como sabemos, recusa tratamento, isola-se, fala sôzinha, ri, chora, lamenta-se e ameaça o silêncio e a sombra, julgando ver e ouvir os mortos...
— Estranha situação!...
Embora reconfortado pela simpatia de Evelina, Ernesto dava curso às lágrimas. Guardava os aponta­mentos da filha, qual se a desconhecesse até então. Verdade que não fora homem de explosões afetivas; entretanto, nem de leve supunha fôsse detestado no lar. Teria a jovem razão? porque se teriam alterado as faculdades mentais de Elisa? que haveria ocorrido naquele longo pedaço de ausência?
Enquanto os dois desencarnados se identificavam sob rigorosa análise naquele retrospecto, esvaiu-se o tempo e o carro fêz parada no ponto terminal: a casa singela, docemente iluminada dentro da noite.
Excitado, mas cauteloso, Fantini instalou Evelina em sítio vizinho, de vez que, assim como sucedera com ela própria, expressou o desejo de consultar, a sós, o ambiente doméstico. Depois disso, decidiria quanto à viabilidade de colocá-la na rota familiar. A posição de Vera, junto de Serpa, não lhes encorajava, de imediato, um avanço a dois.
Evelina concordou. Aproveitaria o ensejo para orar, refletir...
Fantini, emocionado, penetrou o reduto que lhe falava tao alto à memória.
Na sala, tudo como deixara. A mesa e as cadeiras surradas que ele mesmo trouxera da residência de Vila Mariana, os apetrechos de pesca, o armário de louça velha, os quadros humildes a penderem das paredes... Registrou, em pranto de comoção, o calor de outro tempo... A pequena distância, enxergava o dormitório da filha, em que ela e o advogado se entregavam a animada conversação, mas, ali, a dois passos, rente a ele, quase tateava o aposento em que tantas vezes repou­sara, ao lado da companheira, aspirando as aragens marinhas...
O relógio marcava alguns minutos, além das nove da noite. Que surpreenderia por trás da porta cerrada?
— Indagava-se, inquieto. — Elisa doente? Desanimada?
Rememorou as lições recolhidas de amigos, na mo­radia espiritual de que chegava refeito para facear quaisquer surpresas, e orou. Pediu forças à Divina Providência. Queria rever a esposa, com distinção e dignidade. As alegações da filha, no automóvel, ditavam-lhe prudência, atenção. Achava-se ali, não para quei­xar-se e sim para agradecer, ajudar, querer bem. Ansiava servir.
Com essa disposição, transpôs o limiar e encontrou-se dentro da câmara, que conhecia em todos os esca­ninhos.
Jamais faria ideia do quadro que se lhe abriu, de imediato, à visão.
Elisa descansava... O corpo magro, o rosto mais profusamente vincado de rugas e os cabelos mais grisalhos... No entanto, junto dela, estirava-se um ho­mem desencarnado, aquele mesmo sobre o qual atirara, tantos anos antes, ao desvairar-se pelo ciúme!... Es­tacou, aterrado... Num átimo, recordou a última ca­çada que empreendera, integrando uma equipe de três companheiros, e na qual adquirira o remorso e o sofri­mento que lhe haviam acompanhado grande parte da vida... Sim, aquele homem sem corpo físico era Dedé, o colega de sua meninice, ou melhor, Desidério dos Santos, o assassinado, cuja sombra supunha ele haver removido para sempre da própria casa.
Acusou-se ra­lado de arrependimento, transido de angústia... Como arrostar o adversário, a injuriá-lo no próprio tálamo?
Fantini chorava para dentro de si, ralado de deses­pero. Motivos ponderosos tinha Ribas, o instrutor, de­longando-lhe a volta. Horas antes descobrira na filha a rival de Evelina, e ali, diante dele, ao pé de Elisa, se estendia o inimigo triunfante, dominador...
Agüentaria com êxito os desafios que a vida lhe propunha, depois da morte? Decerto rentearia, por fim, com o homem que não suportava. Ambos desencar­nados se defrontariam agora, quais estavam, tais quais eram.
Diligenciou Fantini asserenar-se e estugou um passo adiante.
O antagonista, em silêncio, deitou-lhe um olhar sarcástico, ostentando a tranquilidade de quem se sabia num momento esperado, mas, com estupefação para ele, Ernesto, a esposa anotou-lhe a presença e desferiu grito terrível:
— Maldito!... Maldito!... — rugiu ela, positi­vamente obsidiada, na penumbra do quarto, que o luar filtrado pela vidraça fracamente alumiava — fora da­qui, Tinhoso!... Fora daqui, assassino!...
Assassi­no!... Socorro, Dedé!... Socorro, Dedé! Leva este infame para fora! Sai, Ernesto! Sai!
Matador!... Ma­tador!...
Entrementes, Caio e Vera invadiram a peça, terri­ficados.
Fêz-se luz forte.
A jovem acercou-se da genitora que bradava im­propérios, segurando a própria cabeça entre as mãos, num esgar de espanto, e tentou consolá-la:
— Mãezinha, que há? estamos aqui, não precisa temer...
— Ah! minha filha!... minha filha! — a enferma soluçou — é seu pai, aquele infeliz!...
Agarrou-se à moça, qual criança assustada, e esticou o clamor, dando a Serpa a impressão de uma alienada mental, no mais fundo desequilíbrio.
— Seu pai está aqui, aquele canalha! Não quero vê-lo!... Defenda-me, pelo amor de Deus!
Voltemos para São Paulo, hoje mesmo!... Tire-me daqui!...
Dos olhos tristes de Ernesto o pranto jorrou em maré de angústia. Tantas vezes acariciara projetos de reencontro!... Tantas vezes imaginara-se pássaro dis­tante do ninho, faminto de repouso na úsnea tépida!... Entretanto, chegava até ali, na condição do hóspede indesejável, abominado pelos seus...
— Elisa! — implorou.
A conturbada esposa, que trazia as faculdades psí­quicas desordenadas, não lhe lobrigava a figura espi­ritual, depois que a luz mais viva se derramou no am­biente; no entanto, lhe assinalava a voz comovida e firme, a repetir, suplicante:
— Elisa! Elisa, ouve!... eu sempre te amei...
Estabeleceu-se a conversação entre os dois, sem que a filha e o namorado conseguissem ouvir senão metade.
— Cala-te, infame! Recuso uma afeição que sem­pre detestei.
— Porque te alteraste assim?
— Sou hoje livre para dizer o que me vem à ca­beça.
— Mas, quando juntos...
— Eu era a escrava algemada ao senhor...
— Entretanto, sempre afirmaste que me querias bem.
— Sempre te desprezei, isto sim...
— Oh! meu Deus!...
— Quem fala em Deus? Um assassino...
— Porque tanta crueldade?
— Dedé me falou que não passas de um matador! Nessa altura do diálogo, fundamente estranho para os dois ouvintes reencarnados que o acompanhavam pelo meio, Serpa inquietou-se e, confessando-se inco­modado ante o delírio da enferma, passou a esqua­drinhar a casa, em busca de medicação que lhe sedasse os nervos.
O entendimento, contudo, entre a obsidiada e o marido, prosseguiu, sem pausa.
— Ouve, Elisa! — mendigou Fantini, em pranto — não nego haver cometido grandes erros, mas inva­riàvelmente por tua causa, pelo extremado apego ao teu carinho!...
— Balela! — gargalhou a interlocutora, entre a ironia e a demência — desde que arrasaste Dedé, passei a gostar dele... A qualquer momento a que vinhas em casa, isso acontecia sempre para infelicidade nossa, porque vivíamos juntos aqui, antes de tua morte, e vivemos juntos depois...
Olha este quarto! Dedé está no lugar onde sempre esteve!...
Semelhantes declarações foram suplementadas de informes, sobre os quais pede a caridade se faça si­lêncio.
Ernesto chorava, ao passo que, defronte dele, o adversário desencarnado sorria, escarnecedor.
Nesse ínterim, o advogado surgiu trazendo a injeção calmante com que Vera socorreu a doente agitada.
Daí a instantes, a senhora Fantini atirou-se ao travesseiro, desfigurada, abatida.
E justamente quando Ernesto transpunha a porta em retirada, Desidério dos Santos, o inimigo, saltou do leito em que jazia parado e tomou-lhe a frente, des­ferindo brados terríveis.

QUESTÕES PARA ESTUDO E DIÁLOGO VIRTUAL

1) No julgamento de Vera, o que faltou receber de Ernesto, enquanto pai, se ele sempre se preocupava em proporcionar boa condição financeira à família?
2) Apesar do desequilíbrio psicológico, com quem Elisa conversava? Como isso era percebido por Vera e Caio?
3) Qual era a condição de Elisa?
4) Por que Elisa mantinha raiva de Ernesto?

Um abraço fraterno,
Equipe André Luiz

Conclusão

Centro Virtual de Divulgação e Estudo do Espiritismo – CVDEE

Sala de Estudos André Luiz

Livro em estudo: E a vida continua (Editora FEB)

Autor: Espírito André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier

Tema: Capítulo 19 – Revisões da vida

CONCLUSÃO

1) No julgamento de Vera, o que faltou receber de Ernesto, enquanto pai, se ele sempre se preocupava em proporcionar boa condição financeira à família?
Para Vera seu pai era um homem com muitas atividades e sem tempo para casa. Apesar de suprir economicamente a família, ela sentia falta de conversa e maior atenção, enquanto filha.

2) Apesar do desequilíbrio psicológico, com quem Elisa conversava? Como isso era percebido por Vera e Caio?
Elisa mantinha vínculo com Desidério, o antigo amigo de Ernesto desencarnado pelo qual se apaixonou. Elisa sente a presença de Ernesto desencarnado e fala com ele, porém é percebida por Caio e Vera como alguém desequilibrada que delira ao ver o que não é percebido por eles.

3) Qual era a condição de Elisa?
Uma mulher em estado de desequilíbrio emocional e com a mediunidade ainda não educada. Assim, sofria a ação de Desidério enquanto desencarnado por vínculo afetivo.

4) Por que Elisa mantinha raiva de Ernesto?
Porque acreditava que Ernesto havia assassinado o homem pelo qual ela se apaixonou, Desidério.

Um abraço fraterno,
Equipe André Luiz